31-01-08 - O Pastor que Hospedou o Ditador
As grandes mudanças que ocorreram na Europa de Leste, nos últimos anos, foram marcadas por modelares histórias de vida. A história protagonizada pela família do pastor Luterano Uwe Holmer mostra-nos como a reconstrução da sociedade de hoje também passa pela capacidade de perdoar.
Quando no final dos anos oitenta se deu o colapso do regime comunista na Alemanha de Leste e o muro de Berlim caiu, o próprio presidente do país, Erich Honecker, e sua esposa Margot, outrora bem guardados no seu luxuoso palácio presidencial, ficaram sem amigos, sem recursos e sem sítio para viver, literalmente na rua. Depois de tratamentos hospitalares o casal foi recusado pelos próprios poderes políticos. Honecker pediu a ajuda da Igreja Luterana e o pedido chegou a um Lar cristão, para doentes mentais, em Lobetal, perto de Berlim, então dirigido pelo pastor Uwe Holmer e sua esposa. O ex-presidente da Alemanha de Leste e a sua esposa, que fora Ministra da Educação durante 26 anos, promotores do ateísmo, solicitavam agora abrigo a um Lar cristão.
Durante a sua vida, o casal Holmer tinha sofrido quarenta longos anos, sob a opressão de um regime político que promovia o ateísmo e pressionava a igreja. O pastor Holmer descreve a sua experiência de jovem, estudante de teologia, sob o regime comunista: "Mesmo nós, os estudantes de teologia, tínhamos que estudar Marxismo-Leninismo nos nossos primeiros semestres. Sentados num amplo anfiteatro, juntamente com estudantes de outras faculdades, o professor explicava-nos a transformação social que decorria na República Democrática Alemã. Para ele a exploração do homem pelo homem tinha sido finalmente ultrapassada porque os meios de produção pertenciam ao povo. O socialismo estava a ser construído e tinha-nos oferecido perspectivas sociais e económicas inesperadas. E quando o socialismo chegasse à maturidade e desenvolvimento absolutos, levaria a um salto radical para um novo estágio mais elevado, o estágio final de desenvolvimento: comunismo. Então, não haveria mais justificação para salários. Toda a gente receberia aquilo de que tinha necessidade. Ninguém quereria ter mais do que os outros, e uma paz maravilhosa reinaria entre a humanidade. O professor fazia uma pausa e então gritava: ´E então construiremos o céu na terra!´ Nova pausa e novo grito: ´E então a igreja morrerá de morte natural, porque se as pessoas experimentam o céu aqui na terra, não irão procurar qualquer outro céu." 1
E o pastor Holmer recorda o seu estado de espírito, em tal contexto, como estudante que se preparava para o ministério pastoral: "O nosso pequeno grupo de estudantes de teologia, ali sentados naquele amplo anfiteatro, sentíamos como se todos os olhos se virassem para nós e pensassem: ´Vocês, pobres teólogos, que miseráveis perspectivas vos estão a dar! Valerá mesmo a pena envolverem-se no ministério da igreja numa altura destas?´ Recordo-me, até aos dias de hoje, de me sentar ali e orar: ´Senhor, apesar de tudo isto, eu creio que Tu tens a vitória e que as portas do inferno não vencerão a Tua igreja." 2
E foi num clima como este que o casal Holmer viveu 40 anos na sua terra. Num ambiente de confronto, sempre sob a ameaça de que o partido usasse meios violentos contra a igreja. O casal sofreu opressão e ameaça de prisão. "Eu nunca sabia se o partido comunista um dia recorreria à violência para tentar acabar com a igreja, mas mesmo assim, eu agradecia a Deus por poder ser um mensageiro da paz no meio dum país de ateísmo de confrontação." -- partilha o pastor. 3
Mas agora, o líder daqueles que haviam predito o fim da igreja e a instalação do céu na terra, vinha pedir abrigo num Lar da igreja, para doentes. A primeira reacção do pessoal do Lar foi a de recusa. Mas... como poderiam eles continuar a orar "como nós perdoámos aos que nos ofenderam" se rejeitavam perdão e abrigo ao casal Honecker? Depois de uma longa conversa, e luta interior, a comunidade do Lar decidiu receber o casal. Ali passaram 10 semanas, de Janeiro a Abril de 1990. O Lar recebeu cerca de 3.000 cartas, metade de apoio e metade de censura. Porque não havia lugar disponível no alojamento do Lar, o casal passou todo este tempo no apartamento do casal Holmer. Exactamente, nas palavras do pastor Holmer: "Tínhamos a viver no nosso apartamento o homem e a mulher que tinham sido responsáveis pelo facto dos nossos filhos não serem aceites no ensino superior. Tínhamos experimentado outros tipos de opressão e mesmo ameaças de prisão. Mas agora, era preciso dar-lhes protecção, segurança e mesmo amor. Não podemos fazer isto se o nosso espírito estiver cheio de inimizade. Assim, o meu desejo era que este período de 10 semanas, com os Honecker como hóspedes, não só os ajudasse mas se tornasse num símbolo para os nossos opositores políticos, e que este símbolo fosse entendido por muitas pessoas na nossa nação." 4
Dezassete anos antes, os filhos mais velhos do casal Holmer, apesar de terem excelente aproveitamento, tinham sido impedidos de prosseguir estudos por se recusarem a participar numa cerimónia de natureza ateísta "Jugendweihe", se recusarem a cantar alguns versos da "Internacional", e se recusarem a participar na prática de tiro pré-militar. Holmer explica: "Nessa altura, escrevi para a Universidade, para as autoridades oficiais e para os líderes do partido e deixei o assunto com o Senhor. Disse a mim mesmo: ´Já esperavas que isto acontecesse à tua família quando conscientemente decidiste ficar na Alemanha de Leste, enquanto os teus pais, irmãos e irmãs fugiram para o Ocidente. Ficaste aqui por amor ao Evangelho. Aquilo que te está a acontecer não é nada fora do normal, nada ´estranho´ como diz o apóstolo Pedro. Isto é apenas parte do sofrimento por amor de Cristo que cada crente deverá sofrer de alguma forma´. Mais tarde, eu estava grato por não ter levado o rancor às costas durante estes 17 anos. Em vez disso, pude lançá-lo fora. De contrário, a nossa família teria transportado um fardo muito pesado! Em última análise, o facto de podermos ter recebido os Honecker sem grandes batalhas interiores resultou do facto de tanto eu como a minha esposa nos termos convertido, quando tínhamos 19 anos, e experimentado o perdão de Deus por todos os nossos pecados. Uma pessoa que vive do perdão de Deus, dia a dia, também pode perdoar os outros... Se uma pessoa não experimentou o perdão dos seus próprios pecados é difícil, ou mesmo impossível, para ela, perdoar aqueles que lhe causaram tanto mal." 5
E foi assim que o casal Holmer pôde viver com o casal Honecker sob o mesmo tecto, tomar as refeições à mesma mesa, dar graças a Deus pelo pão de cada dia, falar livremente. Mais tarde, era a própria senhora Honecker que preparava refeições leves para o marido, dado o seu precário estado de saúde. Ao cair da noite, o casal e o pastor faziam caminhadas ao redor do lago da vila. Conversas... longas conversas. De facto, os casais tornaram-se amigos. "Não é possível viver juntos debaixo do mesmo tecto, durante 10 semanas, sem desenvolver uma preocupação pessoal pelo outro. Pelo menos, é algo que nós crentes em Cristo não podemos fazer, porque podemos lançar fora tudo aquilo que se interpôs entre nós e os nossos companheiros e agora estamos livres para nos relacionarmos com eles, especialmente se eles se encontram em necessidade. Foi esta a nossa experiência com os Honecker." 6
Mais tarde o casal Honecker deixou o Lar da igreja para o marido receber tratamento médico no hospital. Posteriormente, o casal Holmer visitou Honecker na prisão em Berlim, então gravemente doente. Foi aqui que Honecker confessou ao pastor Holmer: "Em breve virá o tempo quando devo deixar esta terra." E as palavras, quase finais, do pastor Holmer ao seu amigo Honecker: "... não se trata do fim... a vida continua... podemos continuar em paz com Deus se aceitarmos o perdão de Jesus." 7
Contado por Fernando Ascenso